“A vitória chegou”

“A vitória chegou”

A tua reação quando soube que estava curada”. Desta frase surgiu o sorriso espontâneo que estampa a primeira edição de 2021. Depois de quase três anos entre diagnóstico e transplante, Jaqueline suspirou leve com a chegada do novo ano. Ano novo, vida nova

Virada de ano é sempre tempo de visualizar o futuro. Além de planejamentos, cada um tem para si desejos. Pedidos lançados ao universo ou súplicas envoltas de fé. Desejos feitos nos minutos finais do ano que se despede ou nos primeiros segundos daquele que chega.

Ao fechar os olhos para despedir-se de 2019, Jaqueline Kolling Borges vislumbrava a conquista de um leito, a realização de um transplante e a conquista da sua cura. Diagnosticada com leucemia, a jovem pedia por vida. Desejo grandioso, não é? Mas, como a Jaqueline de 2021 diria à Jaqueline daquela época: “Nada para Deus é impossível”.

Como comemorar a realização de um desejo tão nobre? Vivendo. Afinal, “a vitória chegou”. E por isso, o sentimento ao receber 2021 foi mais leve, assim como vida deverá ser a partir da cura.

O DIAGNÓSTICO

Aos 19 anos, Jaqueline residia sozinha em Lajeado. Cursando enfermagem, ela também trabalhava na área, atuando no mesmo município de residência. Aos finais de semana o destino era quase sempre o mesmo: Paverama, sua cidade Natal, em visita aos pais e ao irmão.

Em fevereiro de 2018, dores de cabeça, cansaço e falta de ar incluíram preocupação na rotina da jovem e de sua família. Entretanto, foram desmaios que os levaram à procura de atendimento médico, uma vez que os sintomas iniciais se assemelhavam aos de alterações hormonais comuns.

Exames laboratoriais foram a primeira solicitação do profissional que a recebeu no Hospital Ouro Branco, em Teutônia. Uma forte anemia, diagnosticada a partir dos primeiros resultados, além de números abaixo dos esperados, alertava para a necessidade de transferência para um centro clínico com estrutura mais completa.

Jaqueline foi então encaminhada ao Hospital Bruno Born, em Lajeado. Lá a paveramense recebeu doações de sangue para reestabelecer o organismo. Internada para acompanhamento e mais exames, ela passou por biópsia e, uma semana após a primeira consulta médica, recebeu o diagnóstico de leucemia.

Em seguida tiveram início as quimioterapias. Depois de 28 dias internada, ela recebeu alta na data de seu aniversário, sete de março e passou por nova biópsia. A medula óssea estava limpa, seu organismo havia respondido bem ao tratamento inicial. O protocolo médico, entretanto, indica prosseguir com tratamento por sete meses, ou seja, haviam mais seis pelo caminho.

Entre as aplicações de cada uma das oito sessões de quimioterapias, o sistema imunológico de Jaqueline ficava frágil. Se na teoria o intervalo entre cada sessão era de 15 dias, na prática a jovem ficava bem menos do que isso longe do hospital. Era preciso acompanhamento clínico para seu reestabelecimento.

PRIMEIRA RECAÍDA

Em setembro um novo protocolo. Os passos seguintes poderiam ser dados em casa através da quimioterapia de manutenção, feita por comprimidos, somada a uma injeção mensal de medicamento. Após a primeira sessão o alívio em relação a recuperação. Diferente da medicação recebida no hospital, esta era menos agressiva.

Entretanto, era preciso aumentar as dosagens da medicação. Depois da segunda sessão uma surpresa ruim. O sistema imunológico estava frágil, o organismo de Jaqueline não estava aceitando o tratamento. Os médicos então decidiram suspender o uso por alguns dias e depois iniciá-lo com dosagem menor.

Em março de 2019 a paveramense passou por uma nova biópsia. Dois meses depois, o resultado atestava que restavam resíduos da doença na medula. Jaqueline passou então por novas sessões de quimioterapia hospitalar. Era preciso que a medula estivesse limpa e ela recuperada para a realização de um transplante.

SEGUNDA RECAÍDA

Foram cerca de 30 dias internada. Em junho, já recuperada, ela foi encaminhada para transplante. No Hospital Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, pai, mãe e irmão passaram por exames para atestarem sua compatibilidade com Jaqueline. O resultado, já esperado, para pai e mãe foi de 50%. O do irmão, Gabriel, foi um pouco maior, cerca de 60%.

Era preciso, porém, um doador 100% compatível. E o prazo para que ele fosse encontrado era de seis meses. Foi então que a família viu a solidariedade mobilizar um município inteiro e atravessar suas fronteiras. Ônibus, topiques e carros lotados saíam de Paverama e de cidades vizinhas em direção a Porto Alegre para doações de sangue e testagem da compatibilidade com Jaqueline.

Enquanto a paveramense só via crescer o número de pessoas dispostas a ajudar, ela seguiu novamente para o tratamento de manutenção, em doses mais baixas. Em outubro, porém, seu organismo passou a rejeitar o medicamento mais uma vez. “O que estaria acontecendo de novo”, a família se questionava. Surgiram também complicações causadas pela quimioterapia.

DOADOR 100%

Naquela altura, a mãe de Jaqueline decidiu buscar mais informações sobre a possibilidade de Gabriel realizar a doação para a irmã, afinal já eram cinco meses de procura, não só no cadastro nacional, como também no internacional. Ao contatar o médio, entretanto, uma surpresa: haviam encontrado o doador 100% compatível.

Era necessária a repetição dos exames, tanto por parte de Jaqueline como pelo doador. Apesar da expectativa, a família estava confiante já que, como o doador se dispôs a passar novamente pelos exames, dificilmente desistiria do transplante depois deles.

O Hospital Santa Casa de Misericórdia não realizava o transplante não aparentado, procedimento entre pessoas sem algum grau de parentesco, e por isso a estudante de enfermagem precisou ser transferida para Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Só no início de novembro de 2019, Jaqueline passou pela primeira consulta na nova casa de saúde.

Já antes disso, ela passava pelo protocolo de tratamento no Hospital Bruno Born, de Lajeado, que em novembro não recebeu por estar debilitada. No mês seguinte, a jovem recebeu medicação para aumentar sua imunidade e conseguir então prosseguir com a quimioterapia se preparando para o transplante.

Depois do resultado dos exames coletados após a confirmação do doador, a família soube que, para a realização do transplante pelo Sistema Único de Saúde (SUS), havia fila de espera e que poderia demorar até seis meses para o procedimento.

Neste momento a história de Jaqueline se cruza com a de Cláudia Araújo, fundadora da Associação Beneficente Amor ao Próximo, através do projeto Leucemia Zero no Brasil. De imediato Cláudia solicitou à família uma série de documentos. Em meio a isso, no dia 02 de janeiro, Jaqueline precisou ser internada. A emergência fez com que a mãe, Lisandra Kolling, não conseguisse reunir todos laudos solicitados.

Ainda assim, Cláudia voltou a contatar a família. Apreensiva por não ter a documentação, Lisandra teve medo de atender suas ligações. “Muitos tentaram ajudar, mas não conseguiram. Como a Jaque não estava bem, não dei muita atenção a isso”. A família não esperava que as notícias eram boas.

Através de mobilização que envolveu deputados e ministros, a Associação Beneficente Amor ao Próximo recebeu a confirmação de um leito no Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo. Além de uma consulta no Hospital de Amor – anteriormente conhecido como Hospital de Câncer de Barretos, também São Paulo.

Como Jaqueline ainda estava em recuperação, a família optou pela ida ao Albert Einsten no dia 21 de janeiro, uma vez que a consulta em Barretos estava agendada para o dia 16 daquele mês. Entretanto, o organismo da jovem seguia debilitado e ela não recebeu alta até aquela data.

TERCEIRA RECAÍDA

A equipe do hospital solicitou então que a família agendasse nova data quando fosse possível realizarem a viagem. Em fevereiro Jaqueline recebeu alta, mas era preciso ficar próxima ao Hospital Bruno Born em caso de alguma recaída. Nesse intervalo de tempo a paveramense passou por novo exame da medula óssea. Mais uma vez haviam resíduos da doença. A viagem não era viável naquele momento, assim como o transplante.

Em acompanhamento ao caso, a equipe do Hospital de Clínicas de Porto Alegre solicitou a aplicação de uma nova medicação, alternativa aos outros tipos de quimioterapia que não estavam funcionando. Cada dose do remédio, entretanto, era caríssima. A família precisava entrar via judicial para recebê-lo.

Foi através das publicações feitas por Jaqueline em suas redes sociais que uma família de Alvorada conheceu sua história. Passados sete meses da perda de uma filha, eles tinham 13 doses da medicação e contataram a paveramense para as doarem. Ainda assim, a jovem precisava de outras quatro doses para completar o primeiro de quatro ciclos de infusão.

O pedido via judicial passou do total de doses para o complemento àquelas recebidas da doação. Ainda assim, houve incerteza sobre o recebimento. Como o tratamento não podia ser interrompido, a família realizou a compra das doses com o dinheiro arrecadado através de campanhas em pról de Jaqueline. Por fim o dinheiro foi liberado e o primeiro ciclo concluído.

FALTA DE LEITO

A nova biópsia mostrava que a estudante de enfermagem estava novamente apta a passar pelo transplante, sua medula estava zerada. Depois de 28 dias de internação, a informação foi repassada ao Albert Einstein para agendamento do procedimento. Foi então que a família soube que não havia mais um leito disponível. Era março de 2020 e o Hospital se tornaria referência para o tratamento à Covid-19, diminuindo os leitos para transplantes.

De “mãos atadas”, resume a mãe sobre o momento. Além da falta do leito, era preciso realizar a infusão do segundo ciclo da nova medicação em 15 dias e a família não sabia se receberiam o medicamento ou se receberiam o dinheiro para a aquisição dele.

NOVO DOADOR

Segundo a família, Cláudia Araújo entrou em contato com a Secretaria de Saúde do Estado e conseguiu aprovação para o envio das novas doses. Além disso, a Associação Beneficente Amor ao Próximo informou sobre o agendamento de uma consulta de avaliação no Hospital de Base, em São José do Rio Preto, São Paulo.

Chegando no município paulista nenhum profissional falava mais sobre o doador 100% compatível. O irmão de Jaqueline seria o doador da medula. Gabriel passou então por uma série de exames para descobrirem, inclusive, o grau de rejeição entre os organismos dos irmãos. Depois disso, no fim de maio, Jaqueline voltou à internação no Hospital Bruno Born, em Lajeado, para a infusão do segundo ciclo de medicação.

No início de junho mais uma viagem à São Paulo. Agora para iniciar o processo de transplante. Enquanto Gabriel recebeu medicação para estímulo da produção de células na medula óssea, Jaqueline era preparada com um medicamento de nome Bussulfano. Depois de quatro dias de quimioterapia recebida pela irmã, Gabriel passou pela coleta das células que Jaqueline receberia no dia seguinte, dia 10 de junho de 2020.

Dezoito dias depois, Jaqueline, Gabriel, a família e a equipe hospitalar comemoraram a pega da medula. Dois dias depois do procedimento, Jaqueline recebeu alta hospitalar e passou a ser acompanhada pela ala de transplante, passando por coletas de exames e observação diária.

PÓS-TRANSPLANTE

Após o procedimento, todo transplantado tem o sistema imunológico de um recém-nascido e precisa passar por todo protocolo vacinal novamente. Em função disso, está mais suscetível a infecções por vírus e bactérias. No período pós-transplante, Jaqueline descobriu uma bactéria urinária e precisou passar por internação novamente. No resultado dos exames: cistite hemorrágica.

O ideal para o quadro era a realização de tratamento em câmara hiperbárica, buscando a cicatrização interna da bexiga. Entretanto, o tratamento estava suspenso em função da pandemia. Por isso, Jaqueline passou a receber medicamentos. Enquanto isso, o quadro agravava.

Em meio a isso, os fortes medicamentos, usados para minimizar as chances de rejeição ao transplante, causaram convulsões na paveramense. Todas as medicações precisaram então ser suspensas para que possíveis sequelas fossem verificadas.

No dia 17 de agosto, Jaqueline foi internada novamente, para tratamento da cistite. Entre passagens pelo bloco cirúrgico para a limpeza de coágulos na bexiga, o uso de sonda e a liberação do tratamento na câmara hiperbárica, passaram 80 dias de internação.

VIDA NOVA

Dia 17 de dezembro de 2020, Jaqueline e a mãe embarcaram de volta ao Rio Grande do Sul para passarem as festas de fim de ano ao lado da família. Na mala a leveza de um transplante realizado com sucesso e um desejo específico para 2021: “frequentar menos hospitais”, pedido singelo para o novo ano. Simples e merecido depois de dezenas de internações e altas hospitalares, progressos e regressos no tratamento e o constante desejo de viver. Gratidão é a palavra que a família usa para resumir os últimos anos. “Vitória chegou. É um milagre que estou aqui agora”.

Quando questionada sobre os aprendizados, Jaqueline daria hoje conselhos à Jaqueline com o diagnóstico recém-descoberto. “Calma que tudo vai dar certo, Tenho fé em Deus, tenha fé na vida. Tudo vai dar certo. Por mais difícil que está sendo agora, no final tudo vai ser recompensado. Tudo vai dar certo. Confia, cabeça erguida, segue firme. Que tudo vai dar certo no final. Tudo é possível. Nada pra Deus é impossível”, conclui.

A experiência do doador

O método utilizado no procedimento foi a chamada coleta por aférese, semelhante a uma transfusão de sangue. A doação é feita por uma máquina que colhe o sangue da veia do doador, separa as células-tronco e devolve os elementos do sangue que não são necessários para o paciente. Sem necessidade de internação nem de anestesia (fonte: REDOME).

Gabriel Kolling Borges foi o doador de Jaqueline. Depois da experiência, o irmão incentiva outros a salvarem vidas. “Foram muitos altos e baixos. Pelo que via ela passando, para mim aquilo era moleza. A doação foi simples e fácil. Não dói e ainda salva vidas”, finaliza.

Para se tornar um doador é necessário realizar cadastro em um hemocentro. Depois de assinar um termo de consentimento, o voluntário passa pela coleta de sangue que passará por análise para identificação das características genéticas. Os dados passam, então, a fazer parte do Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME). Em caso de um paciente com possível compatibilidade, o doador é procurado para passar por novos exames e então decidir sobre a doação.

Quer saber mais sobre o cadastro de doador voluntário? Acesse redome.inca.gov.br e esclareça suas dúvidas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao Topo