ENTREVISTA: “Paternidade é um DIREITO, não é simplesmente um DEVER”

ENTREVISTA: “Paternidade é um DIREITO, não é simplesmente um DEVER”

No mês de agosto, dedicado aos pais, são frequentes os diálogos sobre paternidade e as reflexões propostas. Vivemos tempos de mudanças, transformações que geram impactos e que provocam muitas dúvidas nos atores envolvidos.
Acompanhe esta entrevista sobre SER PAI e a paternidade no tempo atual, com Miguel Fontes, formado em administração pública pela Universidade Católica de Brasília (UCB), com mestrado em relações internacionais e doutorado em saúde pública pela Universidade Johns Hopkins, que atua como diretor executivo na Promundo, organização não governamental brasileira, sem vínculos institucionais com organizações estrangeiras, que atua em diversas regiões do Brasil e outros países do mundo, buscando promover a igualdade de gênero e a prevenção da violência, com foco no envolvimento de homens e mulheres na transformação de masculinidades.


1. Como surgiu o seu interesse em atuar na questão da paternidade?
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza em seu artigo 22 Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. (E no seu) Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.
No entanto, mesmo assegurado pelo ECA, verifica-se que a participação paterna no cuidado de seus filhos e suas filhas ainda é incipiente. Tudo isto está muito relacionado a fatores socioculturais e falta de políticas públicas e programas que contribuam para que a figura paterna possa realmente se envolver em condições de igualdade no cuidado. O machismo, por exemplo, é uma determinante ideológica sociocultural muito importante que coíbe e impede de maneira significativa este envolvimento. Uma parcela significativa da população ainda acredita que mulheres são mais propensas ao cuidado infantil enquanto os homens são mais propensos ao sustento da família.

2. Fale um pouco do propósito e o trabalho do Programa P.

O Programa P disponibiliza estratégias e atividades para engajar os homens na paternidade e no cuidado, envolvendo-os desde a gravidez até a primeira infância de seus filhos. Atividades práticas e dramatizações com pais e casais permitem criar um ambiente seguro para o questionamento de normas de gênero e para possibilitar novos e positivos comportamentos sociais relacionados com o cuidado e com o envolvimento dos homens no pré-natal e na primeira infância de seus filhos e suas filhas. Além de oferecer oficinas de sensibilização em grupo, o Programa P capacita profissionais dos setores de saúde e da assistência social, apoia e mobiliza campanhas de sensibilização comunitárias, locais e nacionais.

3. Qual a sua definição de SER PAI? O que pensa sobre o pressuposto de que pai deve ser figura de autoridade e disciplina, enquanto mãe exerce o papel de amor e acolhimento? Isso também são reflexos do machismo?

SER PAI é ser parte integral de um outro ser e vice-versa. É entender que o amor não é somente um sentimento, mas tem braços, pernas, cabeça, coração.
Em relação aos pressupostos, são “verdades” criadas por correntes sociais que não correspondem a realidade. Centenas de estudos já demonstram que a participação masculina, em igualdade de condições em relação a suas parceiras ou parceiros, no cuidado dos filhos e filhas estão diretamente associados a melhora do desenvolvimento infantil. Isso Além de diversos estudos que demonstram a contribuição desta participação para suas parceiras ou parceiros e para o próprio homem.
O que se deve entender é que a paternidade é um DIREITO, não é simplesmente um DEVER. Estudos que realizamos em nossos projetos já demonstram que a participação igualitária no cuidado de um filho ou uma filha tem efeitos significativos na saúde do próprio homem. Em base a definição de saúde, o homem atinge níveis muito mais elevados de um completo bem-estar físico, mental e social.

4. Quais os maiores desafios para os pais na atualidade?

A cultura do machismo tem uma forte repercussão também nas políticas públicas e programas sociais. Os sistemas de saúde, assistência social e educação não enxergam, muitas vezes, o papel fundamental do homem no cuidado. Avanços significativos já foram alcançados na saúde, desde a implementação no Brasil de uma política de saúde do homem de 2009. Dentro desta política, os protocolos de pré-natal do parceiro constituem um avanço significativo. Atualmente, em diversas unidades de saúde, o homem já é ativamente convidado a uma participação efetiva no cuidado dos seus filhos e filhas desde o pré-natal.
No entanto, há muito o que evoluir. Por exemplo, a discrepância da licença parentalidade entre homens e mulheres é um entrave fundamental. Discussões importantes no Congresso Nacional já estão ocorrendo sob a liderança da Frente Parlamentar da Primeira Infância, com coordenação da deputada Leandre Del Ponte. Além disso, o Marco Legal da Primeira Infância já foi uma evolução para diminuir esta desigualdade, com a criação do conceito de Empresa Cidadã que permite além dos cinco dias de licença paternidade legal, obter mais 15 dias de licença. Porém, este prazo está muito aquém da necessidade de uma participação efetiva do homem durante os primeiros meses de vida de uma criança e é neste momento, em que o vínculo se torna mais efetivo.

5. Qual a sua definição de machismo? E quais os impactos do machismo no exercício da função de pai e na vida da família?
O machismo é uma ideologia sociocultural rígida de gênero em que se estabelece o que é e não é adequado para ser um “verdadeiro” homem. E, esta ideologia é disseminada logo nos primeiros anos de vida de uma criança com afirmações definitivas, como: “menino não chora”, “menino não brinca de casinha”, “menino tem que ser forte”, “menino tem que saber responder com violência no caso de uma agressão”, “menino não pode usar a cor rosa”, entre tantas outras regras sociais que esta ideologia nos impõe. Como muito de nós fomos criados por pais, vizinhos, irmãos/irmãs, colegas de escola, profissionais sociais, etc. em base a esta ideologia sociocultural, acabamos nos tornando disseminadores também desta ideologia.
O que se sabe em definitivo que esta ideologia é um desastre. Não só cria uma situação propensa a violência de gênero, como também traz consequências avassaladoras para a saúde do próprio homem e da família. Não podendo externalizar os seus medos e angústias, o homem se torna refém desta ideologia e coloca em prática a ferramenta maléfica que lhe é oferecido: a violência. Esta violência pode ser contra sua parceira e outras pessoas, como o feminicídio, a violência doméstica contra seus filhos e filhas e a violência auto infligida, podendo chegar ao suicídio. No Brasil, os homens para cada 100 casos de suicídio, 76 ocorrem entre homens.

  1. Como falar sobre machismo com pessoas extremamente machistas (culturalmente formadas)?
    Os processos formativos que oferecem a homens espaços seguros e sem julgamentos para uma discussão sincera sobre o machismo têm trazido resultados significativos para a vida de muitos homens e famílias. Na cidade da Caxias do Sul, por exemplo, o programa HORA (Homens, Orientação, Reflexão, Atendimento) promovido pelo judiciário local vem obtendo resultados significativos para que homens possam ressignificar a sua masculinidade e se livrar dos comportamentos e atitudes machistas. Este programa está mais vinculado a uma situação séria em que homens já foram acusados de agressão.
    Para um trabalho também preventivo, o PROMUNDO desenvolve seus programas exatamente para que os homens tenham acesso a este tipo de processo formativo antes das consequências nefastas do machismo. Além do Programa P, o PROMUNDO também implementa em diversas regiões do Brasil e do mundo o Programa H que trabalha com homens de uma maneira geral. É interessante notar que temos também um programa para mulheres, o Programa M. Este programa tem foco nos papéis equitativos de gênero, no empoderamento em contextos de relações interpessoais, saúde e direitos sexuais e reprodutivos.
  2. Como o machismo afeta a vida e a saúde do homem?
    O machismo está diretamente relacionado a uma série de consequências horríveis para a saúde do homem. Segundo uma análise sistemática da ONU Mulheres no Brasil, 56,5% dos homens têm medo de abrir seus maiores anseios e dúvidas até para os melhores amigos; são 95% da população do sistema carcerário brasileiro; estão mais expostos ao consumo excessivo de álcool e drogas; se matam todos os dias com facas, revólveres e carros — 91,4% das vítimas de homicídio são homens. Sofrem de depressão em silêncio e 80% lidam com alexitimia, uma condição expressa pela dificuldade em interpretar e expressar os próprios sentimentos e emoções.
    Isto além das diferenças claras na expectativa de vida em relação a mulheres. O Brasil tem uma das maiores discrepâncias de longevidade em relação a gênero no mundo, com os homens vivendo em média sete anos menos que as mulheres. No caso mais recente da COVID-19, a maior proporção de hospitalizações e mortes são de homens.
  3. Você entende que idolatrar, elogiar e valorizar a atitude de pais atuantes na função pode ampliar ainda mais o machismo presente?
    Os melhores exemplos realmente são aqueles em que os homens e mulheres reconhecem que há uma divisão igualitária no cuidado dos filhos e filhas. Isto em relação a diversas atividades domésticas, como “acordar a noite”, “trocar fraldas”, “brincar com a criança”, etc. Neste sentido, os melhores depoimentos são geralmente tanto do parceiro e da parceira ou dos dois parceiros(as) no caso de casais homoafetivos em que claramente indicam que as atribuições são verdadeiramente divididas. Apenas o depoimento de homens sobre suas atribuições mais pontuais realmente pode representar um risco ao entendimento da importância de uma verdadeira igualdade de gênero no cuidado dos filhos e filhas como forma de total ressignificância da masculinidade.
  4. Como fazer a transição de um pai formado numa cultura machista, buscando ser um pai diferente?
    É trabalhoso, não tanto em termos de atuação mais direta nas atribuições domésticas (esta na verdade é a melhor e mais prazerosa parte), mas da falta de entendimento fora e dentro de casa de querer exercer este direito. Neste sentido, tive muita sorte, dentro de casa, com minha parceira, pois sempre me incentivou muito a ter um papel definitivo na divisão de tarefas do cuidado dos meus filhos. Me trazia muita segurança de que eu era capaz de exerces estas atribuições tão prazerosas, como dar constantemente banho nos meus filhos, trocar fraldas, escolher roupas, acordar a noite, brincar durante muitas horas ao dia com meus filhos, ir ao médico, levar na escolinha, passear sozinho com eles, ir ao parquinho constantemente com meus filhos, etc. Consegui também muito apoio psicológico de profissionais competentes que me instrumentalizaram para que entendesse melhor os ciclos de vida infantil. Isso além de ler muitos livros e materiais sobreo tema da paternidade ativa.
    Mas, tenho que admitir que durante muitos momentos não senti este mesmo acolhimento em espaços públicos, nas relações de amizade, familiares e profissionais. Muitos ainda enxergam com certa estranheza um homem que realmente se engaja no cuidado dos seus filhos.
  5. Como as escolas podem ajudar na formação de uma sociedade menos machista?
    A escola é um espaço fundamental para esta mudança e pode contribuir de duas maneiras: 1. Na formação e no acolhimento incondicional do homem cuidador; 2. Na implementação de políticas pedagógicas e institucionais de igualdade de gênero no ambiente escolar. No caso de formação e acolhimento, as escolas devem criar competências para saber dialogar com as figuras paternas da mesma forma com que dialogam com as figuras maternas. Já no caso, da implementação de políticas pedagógicas, capacitar professores para que entendam a importância da igualdade de gênero nas atividades escolares para o fortalecimento da sociedade em médio e longo prazo. Isso além de criação e incentivo de condições para que homens possam atuar como educadores no ensino infantil e nas próprias creches. Ainda se vê um número significativo de mulheres que atuam em creches e no ensino infantil e que esta formação profissional ainda é restrita (em sua grande maioria) a mulheres.
  6. Quais as principais mudanças estruturais e culturais que você entende necessárias e que precisam ser agilizadas para termos uma sociedade mais justa com pais, mães e filhos?
    Nossa Constituição, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Marco Legal da Primeira Infância já estabelecem uma série de diretrizes legais para que estas mudanças estruturais e culturais ocorram. A dificuldade está na sua implementação. Sendo assim, precisamos desde ajustes na legislação mais específica, como no caso da licença paternidade, como também de programas educacionais, de saúde e da assistência social que possam contribuir para um processo formativo de homens e mulheres sobre as questões relacionadas a gênero e as mazelas da cultura do machismo. Algumas iniciativas já estão sendo implementadas, mas precisamos expandir rapidamente para o maior número possível de comunidades.
  7. Quais dicas que você pode dar aos pais que pretendem acertar ao máximo na função?
    Não se intimidem, participem de todos os momentos de cuidado dos seus filhos e filhas e lutem contra o machismo. É bom para sua saúde, para sua família, para sua comunidade e para o país. Paternidade participativa, equitativa e plena é um direito.
  8. Quais os pilares de uma paternidade saudável?
    Envolvimento desde o pré-natal, participação igualitária no cuidado em todos os ciclos de vida e ressignificância da masculinidade.
Miguel Fontes, diretor executivo da Promundo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Voltar ao Topo